sábado, 6 de abril de 2019

Centauro alado


Depois da vitória no xadrez de Deep Blue, o computador, sobre Garry Kasparov, o humano campeão mundial desse jogo, a humanidade sentiu-se ligeiramente ultrajada.

Alguns resolveram não acreditar, o que é sempre um bom princípio, outros deitaram as mãos à cabeça que continha o cérebro e terão exclamado "Meu Deus, onde é que isto vai parar" e outros disseram que afinal era só um jogo de xadrez, brincadeira de crianças, se fosse um jogo a sério, outro galo cantaria. As pessoas quando ficam espantadas têm uma certa tendência para recorrer a Deus e aos provérbios, já que ambos contém acumulada sabedoria de muito tempo, o que ajuda a pensar o impensável.

A ocorrência da vitória dos bites deu-se em 1997, ainda o milénio não tinha sido dobrado. Vivia-se nessa altura numa saudável eminência do fim do mundo no ano 2000, há muito prevista. Nada que tivesse o atual fundamento já que há 20 anos ainda não era tão evidente até que ponto estávamos a dar cabo do planeta. Por essa altura, acresceu uma, à data moderna, previsão dum simultâneo fim do mundo, por razões de ordem tecnológica relativas à alegada incapacidade dos computadores então existentes, se acertarem com o número 2000 a indicar o ano. Felizmente, ao soarem as doze badaladas e ao surgir 00:00 nos relógios digitais nada aconteceu de mais especial, que o início de um ano novo. A não concretização do fim do mundo nessa data deu oportunidade à humanidade para se continuar a dedicar pessoalmente ao tema com o sucesso que cheias, secas, incêndios, tornados e outros fenómenos meteorológicos extremos demonstram.

A propósito da competição histórica entre Deep Blue e Kasparov, em 29 de julho de 1997, o The New York Times publicava: ''It may be a hundred years before a computer beats humans at Go - maybe even longer,'' said Dr. Piet Hut, an astrophysicist at the Institute for Advanced Study in Princeton, N.J., and a fan of the game. '.

Demorou um bocadinho menos. Em 2016 um computador venceu o campeão mundial de Go. O homem do Go, em termos gerais, não era muito diferente do homem do Xadrez. Ambos, aliás, não eram muito diferentes do homem que descobriu o fogo ou a roda. A evolução da espécie humana é bastante lenta e, em milhões de anos pouco mais conseguiu que começar a perder os dentes do siso. O computador, pelo contrário, evoluir extraordinariamente. Passou de máquina programada pelo homem a máquina que, depois disso, consegue aprender sozinha. De soma e processamento de quantidades enormes de dados, no caso do xadrez de jogadas registadas, passou a inventar novas jogadas que não se conheciam. Passado algum tempo nisto, venceu no Go.

Após a experiência que causou embaraço à espécie humana, criaram-se equipas de centauros, compostas por humanos e AI (Artificial Inteligence). Parece que uns e outros cometem erros de natureza diferente, por isso a colaboração poderá ser, além de inevitável, frutuosa.

A figura do centauro para representar esta nova simbiose mostra que constelações, mitos e clássicos continuam tão aptos como sempre estiveram para integrar o novo. Acrescentar à equação Pégaso dar-lhe-ia asas. O que faria de cabeça/cérebro num cavalo/homem/alado fica em aberto. Os deuses devem estar a tratar do assunto, com a eficácia que têm demonstrado.