quarta-feira, 29 de abril de 2020

Medir a temperatura à CNPD



A Lei é uma forma de organizar a sociedade. Não é a única e não é a melhor. Convém, no entanto, que seja boa, já que é o que o Estado tem mais à mão para proceder ao estabelecimento de regras, é suscetível de ser conhecida pelos seus destinatários – embora normalmente não o seja – e é suscetível de ser aplicada coercivamente pelas ainda existentes forças no terreno, como polícias e militares.

Nesta vida em tempos de vírus a que temos estado sujeitos é patente que regras razoáveis propiciam boa efetividade e regras desrazoáveis e desproporcionais propiciam reação no povo que, no limite, é quem mais ordena. É, também, o esquecido fundamento de legitimidade da tal Lei, criada pelos seus representantes eleitos precisamente para o fazerem e aplicada pelos executivos com vista ao bem comum. Esta reação, em Portugal, que tem um povo antigo, coeso, sensato, resistente e com uma enorme capacidade de adaptação é claramente visível no confinamento que sabiamente antecipou e no desconfinamento que sabiamente está a antecipar. É também visível na dedicação dos profissionais públicos e privados - e privatizados de serviços essenciais que o Estado foi vendendo ao desbarato a quem paga mais, sem olhar a geografias ou intenções - que fizeram e fazem o possível, muitas vezes parece o impossível, para salvar vidas e manter o país a funcionar.

É neste contexto que surge uma decisão de uma entidade burocrata que tem por função aplicar Lei comunitária, nomeadamente o Regulamento Geral de Proteção de Dados. Este Regulamento é um exemplo exuberante de, como tão bem disse oportunamente Salgueiro Maia a outro propósito, “o estado a que isto chegou”.

Determinou, então, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), através de (des)Orientações que as empresas não podiam recolher informação sobre o dado pessoal sensível de saúde - a temperatura corporal dos seus empregados na volta ao trabalho – exceto se fosse profissional de saúde a fazê-lo. A discussão jurídica do assunto não é para aqui chamada, dizendo-se simplesmente que o Direito contém sempre mecanismos que permitem obstar ao disparate, assim se pretenda.

Quanto às Orientações em causa, saliente-se que as pessoas estão confinadas, não podendo sair de casa para não contaminar os outros há quase dois meses, os trabalhadores cujo trabalho não é realizado através de meios digitais e, por isso, têm de sair para os seus locais de trabalho, vão cumprindo todos os protocolos sanitários, mesmo que invasivos, que lhes permitem realizar as suas funções essenciais, quase toda a vida passou para o digital onde dados pessoais de toda a espécie são em permanência disponibilizados sabe-se lá a quem, a escola de crianças minúsculas é feita em plataformas online por indicação do Estado que também usa drones e outra tecnologia para verificar por onde andam a passear os cidadãos mais rebeldes ou menos resistentes psicologicamente à prisão domiciliária a que estão sujeitos. E etc, etc, etc que todos vemos e vivemos, em Portugal, na Europa e no mundo.

Neste contexto, de calamidade sanitária e económica, em situação absolutamente excecional e impar na História, estando milhares, milhões, biliões de pessoas em risco de vida físico - pelo Covid-19 ou pela fome e outras doenças - e de perderem a vida que tinham, emprego e empresa, casa, subsistência, tudo, estando empresários e trabalhadores a tentar salvar o que for possível, neste contexto, repita-se, vem a CNPD dizer que é proibido aos empregadores medir a temperatura a trabalhadores, de modo a que se estiverem doentes não infetem os colegas e eles próprios se possam proteger e tratar salvo, atente-se na exceção, se for um profissional de saúde a segurar no termómetro. Eventualmente poderiam retirar-se umas dezenas ou centenas destes profissionais das unidades de cuidados intensivos para se dedicarem a esta imprescindível tarefa de proteger o dado de saúde sensível “temperatura corporal”, à porta das fábricas que não fecharam e dos estabelecimentos que ainda não faliram.

Medir a temperatura à CNPD, ato naturalmente praticado por profissional de saúde devida e comprovadamente qualificado para o efeito, pode-se revelar uma medida útil no combate à pandemia.

sábado, 25 de abril de 2020

25 de Abril - "O dia inicial inteiro e limpo"

                                                                                     imagem da net

25 de Abril
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 17 de abril de 2020

História do gato que vive para sempre


O velho que lia romances de amor desde que nasceu, morreu.

Luís Sepúlveda, escritor chileno, por nascimento e devoção, escritor global por exílio e vocação, escritor herói como queremos que sejam, lutando por ideais e pela liberdade, preso e exilado, jornalista e ideólogo, morreu aos setenta anos. Pelas contas de hoje em dia poderia viver, sem grande dificuldade, mais vinte ou trinta anos produzindo a prosa maravilhosa, no duplo sentido de excelente e mágica, que conseguia produzir.

Leu, aos 16 anos, Moby Dick e decidiu que a melhor forma de enunciar o que pretendia dizer era através dos animais. Escreveu bastante, não o bastante, em vários registos, sendo as fábulas um dos que lhe é mais reconhecido. Escrever fábulas tem sido uma forma muito eficaz de sintetizar e permitir visualizar a história e, principalmente, a moral da história. São, também, especialmente aptas à leitura por crianças e jovens, inscrevendo-as na sua educação. Lembramo-nos muito bem das histórias de animais que lemos ou vimos em pequenos, em desenhos animados (era assim que se chamavam antes de se chamarem outras coisas, como filmes de animação). Lembramo-nos das fábulas de Sepúlveda, “História de (…)” contando coisas implausíveis, como a mais conhecida em que um gato ensina uma gaivota a voar. Lembramo-nos, em paralelo, do Triunfo dos Porcos de Orwell e da Montanha da Água Lilás de Pepetela, murros no estômago políticos e económicos, doces e ternos murros no estômago.

Escreveu muitos outros géneros, como romances, contos ficcionais e reais. Escreveu muito sobre política, ideologia, ideais. Principalmente escreveu muitíssimo bem.

Numa pequena peça do Telejornal passaram excertos duma entrevista que deu recentemente em Portugal e, do que disse, duas coisas pareceram-me especialmente lindas. 

Uma é que os escritores têm uma capacidade muito especial, “somos capazes de criar beleza com o que escrevemos”. 

A outra tem a ver com o 25 de abril, a revolução dos cravos em Portugal que inspirou outras, tornou-se na evidência de que era possível derrubar regimes ditatoriais e, no caso, sem banhos de sangue. A notícia chegou aos resistentes da América do Sul, ao escritor, nos seguintes termos “O que se passa é que vocês ganharam em Portugal”. Sentiram que não estavam sós e que era possível ganhar.

É uma imensa pena que um dos que era capaz de criar beleza no mundo não possa continuar a fazê-lo.

As Rosas de Atacama murcharam. Depois lembraram-se de quem é Luís Sepúlveda, endireitaram-se, compuseram as suas pétalas, encontraram na seiva que conseguiam extrair do deserto a força que lhes permitiu mostrarem-se maiores e mais bonitas, como A Morena e a Loira. Contendo heroicamente as lágrimas, com uma dignidade que lhes é intrínseca, respiraram fundo, brilharam, sorriram e olharam para a frente.