A Lei é uma forma de organizar a
sociedade. Não é a única e não é a melhor. Convém, no entanto, que seja boa, já
que é o que o Estado tem mais à mão para proceder ao estabelecimento de regras,
é suscetível de ser conhecida pelos seus destinatários – embora normalmente não
o seja – e é suscetível de ser aplicada coercivamente pelas ainda existentes
forças no terreno, como polícias e militares.
Nesta vida em tempos de vírus a
que temos estado sujeitos é patente que regras razoáveis propiciam boa
efetividade e regras desrazoáveis e desproporcionais propiciam reação no povo
que, no limite, é quem mais ordena. É, também, o esquecido fundamento de
legitimidade da tal Lei, criada pelos seus representantes eleitos precisamente
para o fazerem e aplicada pelos executivos com vista ao bem comum. Esta reação,
em Portugal, que tem um povo antigo, coeso, sensato, resistente e com uma
enorme capacidade de adaptação é claramente visível no confinamento que
sabiamente antecipou e no desconfinamento que sabiamente está a antecipar. É
também visível na dedicação dos profissionais públicos e privados - e privatizados
de serviços essenciais que o Estado foi vendendo ao desbarato a quem paga mais,
sem olhar a geografias ou intenções - que fizeram e fazem o possível, muitas
vezes parece o impossível, para salvar vidas e manter o país a funcionar.
É neste contexto que surge uma
decisão de uma entidade burocrata que tem por função aplicar Lei comunitária,
nomeadamente o Regulamento Geral de Proteção de Dados. Este Regulamento é um
exemplo exuberante de, como tão bem disse oportunamente Salgueiro Maia a outro
propósito, “o estado a que isto chegou”.
Determinou, então, a Comissão
Nacional de Proteção de Dados (CNPD), através de (des)Orientações que as
empresas não podiam recolher informação sobre o dado pessoal sensível de saúde
- a temperatura corporal dos seus empregados na volta ao trabalho – exceto se
fosse profissional de saúde a fazê-lo. A discussão jurídica do assunto não é
para aqui chamada, dizendo-se simplesmente que o Direito contém sempre
mecanismos que permitem obstar ao disparate, assim se pretenda.
Quanto às Orientações em causa,
saliente-se que as pessoas estão confinadas, não podendo sair de casa para não
contaminar os outros há quase dois meses, os trabalhadores cujo trabalho não é
realizado através de meios digitais e, por isso, têm de sair para os seus
locais de trabalho, vão cumprindo todos os protocolos sanitários, mesmo que
invasivos, que lhes permitem realizar as suas funções essenciais, quase toda a
vida passou para o digital onde dados pessoais de toda a espécie são em permanência
disponibilizados sabe-se lá a quem, a escola de crianças minúsculas é feita em
plataformas online por indicação do Estado que também usa drones e outra
tecnologia para verificar por onde andam a passear os cidadãos mais rebeldes ou
menos resistentes psicologicamente à prisão domiciliária a que estão sujeitos.
E etc, etc, etc que todos vemos e vivemos, em Portugal, na Europa e no mundo.
Neste contexto, de calamidade
sanitária e económica, em situação absolutamente excecional e impar na
História, estando milhares, milhões, biliões de pessoas em risco de vida físico
- pelo Covid-19 ou pela fome e outras doenças - e de perderem a vida que tinham,
emprego e empresa, casa, subsistência, tudo, estando empresários e trabalhadores
a tentar salvar o que for possível, neste contexto, repita-se, vem a CNPD dizer
que é proibido aos empregadores medir a temperatura a trabalhadores, de modo a
que se estiverem doentes não infetem os colegas e eles próprios se possam
proteger e tratar salvo, atente-se na exceção, se for um profissional de saúde a
segurar no termómetro. Eventualmente poderiam retirar-se umas dezenas ou centenas
destes profissionais das unidades de cuidados intensivos para se dedicarem a
esta imprescindível tarefa de proteger o dado de saúde sensível “temperatura
corporal”, à porta das fábricas que não fecharam e dos estabelecimentos que
ainda não faliram.
Medir a temperatura à CNPD, ato naturalmente
praticado por profissional de saúde devida e comprovadamente qualificado para o
efeito, pode-se revelar uma medida útil no combate à pandemia.