sexta-feira, 17 de abril de 2020

História do gato que vive para sempre


O velho que lia romances de amor desde que nasceu, morreu.

Luís Sepúlveda, escritor chileno, por nascimento e devoção, escritor global por exílio e vocação, escritor herói como queremos que sejam, lutando por ideais e pela liberdade, preso e exilado, jornalista e ideólogo, morreu aos setenta anos. Pelas contas de hoje em dia poderia viver, sem grande dificuldade, mais vinte ou trinta anos produzindo a prosa maravilhosa, no duplo sentido de excelente e mágica, que conseguia produzir.

Leu, aos 16 anos, Moby Dick e decidiu que a melhor forma de enunciar o que pretendia dizer era através dos animais. Escreveu bastante, não o bastante, em vários registos, sendo as fábulas um dos que lhe é mais reconhecido. Escrever fábulas tem sido uma forma muito eficaz de sintetizar e permitir visualizar a história e, principalmente, a moral da história. São, também, especialmente aptas à leitura por crianças e jovens, inscrevendo-as na sua educação. Lembramo-nos muito bem das histórias de animais que lemos ou vimos em pequenos, em desenhos animados (era assim que se chamavam antes de se chamarem outras coisas, como filmes de animação). Lembramo-nos das fábulas de Sepúlveda, “História de (…)” contando coisas implausíveis, como a mais conhecida em que um gato ensina uma gaivota a voar. Lembramo-nos, em paralelo, do Triunfo dos Porcos de Orwell e da Montanha da Água Lilás de Pepetela, murros no estômago políticos e económicos, doces e ternos murros no estômago.

Escreveu muitos outros géneros, como romances, contos ficcionais e reais. Escreveu muito sobre política, ideologia, ideais. Principalmente escreveu muitíssimo bem.

Numa pequena peça do Telejornal passaram excertos duma entrevista que deu recentemente em Portugal e, do que disse, duas coisas pareceram-me especialmente lindas. 

Uma é que os escritores têm uma capacidade muito especial, “somos capazes de criar beleza com o que escrevemos”. 

A outra tem a ver com o 25 de abril, a revolução dos cravos em Portugal que inspirou outras, tornou-se na evidência de que era possível derrubar regimes ditatoriais e, no caso, sem banhos de sangue. A notícia chegou aos resistentes da América do Sul, ao escritor, nos seguintes termos “O que se passa é que vocês ganharam em Portugal”. Sentiram que não estavam sós e que era possível ganhar.

É uma imensa pena que um dos que era capaz de criar beleza no mundo não possa continuar a fazê-lo.

As Rosas de Atacama murcharam. Depois lembraram-se de quem é Luís Sepúlveda, endireitaram-se, compuseram as suas pétalas, encontraram na seiva que conseguiam extrair do deserto a força que lhes permitiu mostrarem-se maiores e mais bonitas, como A Morena e a Loira. Contendo heroicamente as lágrimas, com uma dignidade que lhes é intrínseca, respiraram fundo, brilharam, sorriram e olharam para a frente. 

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