Neste tempo suspenso, em que
vemos sem compreender, ouvimos sem absorver, pairamos numa estratosfera em que
procuramos chegar com os pés ao chão, para os pousar em desinfectante, pomo-nos
a pensar em coisas abaixo de básicas e para além de filosóficas, como sejam a
obtenção de papel higiénico e os desígnios que Deus(es) e Universo terão para
esta forma de vida, biológica, por natureza frágil, eventualmente única, no
infinito e mais além.
O problema do papel higiénico foi
ultrapassado pela constatação de que vai sendo reposto nas prateleiras das
lojas, o mesmo acontecendo com bens essenciais e supérfluos, pelo menos até
ver. A questão da claustrofobia foi acomodada com umas escapadelas a essas
mesmas lojas ou o ensaio de uns passos de corrida à volta do prédio, envergando
o equipamento devido para que não haja dúvidas de que o cidadão ou a cidadã em
exercício, se encontra no exercício do estreito direito ao passeio higiénico. O
cidadão ou cidadã, na volta a casa, é imediatamente higienizado com
desinfectante no hall de entrada e depois higieniza-se com água e sabão na casa
de banho. São procedimentos morosos e meticulosos, que se efectivam com a
diligência devida. A questão do distanciamento social físico, ultrapassa-se
pela proximidade social digital, ficando os confinados, para além do
teletrabalho e da tele-escola, horas infindas online em tele/vídeo-chamadas,
salas de reunião, salas de estar, ginásios, aulas de culinária e coisas várias,
redes sociais, grupos para isto e para aquilo, num convívio frenético no
ciberespaço, que preenche totalmente todos os minutos do dia. Esta realidade
ocorre, tanto porque os confinados pretendem comunicar com os que estão
distantes, como porque pretendem escapar daqueles com quem calhou estarem
confinados. Exceto os que estão sozinhos, a quem se aplica só a necessidade de
se relacionarem com outros seres humanos.
A par desta higienização ubíqua e
desta desenfreada aproximação digital originada pelo obrigatório distanciamento
social físico e confinamento residencial, há a permanente avalanche de informação
catastrófica, de calamidade passada, presente e prevista para o futuro, que nos
soterra, tolhe e deixa absolutamente perplexos.
Escusado será dizer que não sobra
muito tempo, nem paciência, para pensar nas coisas para além de filosóficas. Mesmo
assim, tem-me ocorrido que este COVID-19 e a reacção global que tem
desencadeado vem, em pequenos apontamentos que passam despercebidos, colocar em
evidência a fragilidade humana, biológica, individual e física versus a invencibilidade
das máquinas, artificial, global e digital.
Para quem anda embrenhado nestas
coisas da tecnologia, da Inteligência Artificial, da vigilância, do desgaste do
Estado de Direito e da Democracia, da produção, partilha e utilização de dados
pessoais e sensíveis, dum mais próximo ou mais distante momento de Singularidade,
dependente do desenvolvimento de uma Inteligência Artificial Geral, olha para o
que se está a passar com o COVID-19 com enorme perplexidade, como todos os outros. Só que,
num cantinho desse espanto, salta à vista a extrema vulnerabilidade do ser
humano individualmente considerado e da humanidade no seu conjunto, por ser
vida biológica e natural, em contraposição à resistência e alcance das máquinas,
por serem matéria não-biológica e artificial. Noutro cantinho desse espanto,
vislumbra-se uma aceleração, complexificação e globalização do que já estava
extrema, crescente e intensamente acelerado e globalizado, assente em
tecnologia, digitalização e inteligência artificial. A corrida passa a ter a velocidade de um sprint. Não tendo as máquinas necessidade de comer e dormir, de socializar, não tendo cansaço, a meta parece estar mais próxima, mais depressa.
Fechando os parênteses do
cantinho do espanto, vou voltar à perplexidade permanente, vendo as notícias da calamidade presente e futura que tolhe e esmaga.
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