Tenho um telemóvel novo, o que é extremamente desagradável. Esta inevitabilidade ocorreu pelas razões normais da obsolescência programada que, no meu caso, é vencida em alguns anos já que me é indiferente perder funções. No limite gostaria mesmo de perder o próprio telefone e manter-me num nível de desconexão e ausência de estímulo não escolhido nem desejado, que são a base da liberdade e da criatividade. Para continuar a manter-me refém uso os argumentos do costume, todos válidos. A vida, atualmente, pressupõe conexão e, não a tendo, implica exclusão. O que, contas feitas, significa escolher entre ser ermita em autossuficiência num campo, sem internet, ou viver e trabalhar em sítios com internet tornando-se, neste caso, a conexão inevitável.
Há algumas situações intermédias em que pessoas cheias de valor tentam fugir ao mainstream e usar coisas alternativas, menos invasivas e dominadoras, normalmente mais caras e a exigir um elevado nível de conhecimento informático. É, por exemplo, o interessante caso de Julia Angwin que em 2014 - imagine-se! – escreveu no New York Times um artigo com o título “Has Privacy Become a Luxury Good?”, disponível aqui. Logo no início afirmava “LAST year, I spent more than $2,200 and countless hours trying to protect my privacy.”. A experiência decorreu, portanto, em 2013, completamente na pré-história da atualidade, já que foi mais ou menos por essa altura que se deu a explosão do machine learning, logo seguida da explosão do deep learning (aprendizagem mecânica usando redes neuronais artificiais, do inglês ANN para Artificial Neural Nets). O que significa que se situação semelhante ocorresse agora, tudo indica que o preço e o tempo aumentariam e os resultados piorariam.
Realizar esta experiência, por falta de dinheiro e/ou conhecimentos, não está ao alcance dos comuns mortais. Esta expressão vai progressivamente caindo em desuso, pelo menos para os muito ricos, na proporção da sua conquista da imortalidade, tanto física – ainda a alguma distância – como digital, esta já uma realidade corrente em várias formas, de que se destaca o exemplo mediático de Deepak Chopra, famoso guru que ajuda a humanidade, agora também através da uma inteligência artificial de si próprio, já que aceitou ser cobaia na experiência da AI Foundation (mais detalhe aqui).
Sucede, então, que o meu novo telefone é incomparavelmente mais irritante que o anterior, por variadíssimas razões, de que se destacam duas.
A primeira é-lhe alheia e tem a ver com tudo o que se perde quando se muda de dispositivo, principalmente porque em vez de o que temos estar guardado num sítio qualquer, está guardado noutro sítio qualquer. Claro que sobrolhos se franzem neste momento, pensando “Santa ignorância, porque é que não tem tudo sincronizado e/ou guardado numa nuvem desta vida e da outra, sempre disponível?!”. Têm toda a razão já que se assim o fizesse, à partida, não teria problema. E convenhamos que tanto o sr. Google, como o sr. Alibaba e outros senhores do ocidente, do oriente e do meio, saberiam de qualquer modo o mesmo, isto é, tudo e também mais alguma coisa. Resisto, no entanto, para meu óbvio mal.
A segunda é o facto de a Inteligência Artificial que tem, ser muito esperta para umas coisas que lhe interessam e extremamente estúpida para outras que me podem interessar a mim. Por exemplo, é exímia a detetar movimento e ao menor toque no telemóvel parece Natal, com luz a acender-se e, neste caso, também com notificações e emails a chegarem freneticamente nesse instante, o que só pode ser uma coincidência. Em contrapartida, é de uma exasperante burrice na escrita, insistindo em corrigir e acrescentar o que estava certo e completo e, com a sua intervenção, fica errado e disparatado. Sei que isto lhe vai passar à medida que eu, com uma paciência que não tenho e estando condenada a ensinar-lhe, for explicando como se faz.
É nesta atividade pedagógica que a humanidade tem estado. Esforçada, exasperada por vezes, obedecendo a ordens “Agora diz: faz uma chamada para a Maria”, repetindo, voltando a repetir mais devagarinho, apagando e reescrevendo. Principalmente gravando tudo, vídeos, imagens, só voz, reuniões, paisagens, viagens, videochamadas pessoais e profissionais, dados biométricos, os do sono, os do fitness, as impressões digitais e a iris que já desbloqueiam dispositivos perfeitamente normais e correntes, e etc, até ao infinito e mais além.
Há algum tempo que se me vai avolumando a convicção de que vai deixando de ser a pessoa a usar o telemóvel, passando a ser o telemóvel a usar a pessoa. O smartphone vai passando de uma extensão do humano que o detém, para um situação em que se integra com a pessoa numa simbiose crescentemente intensa, caminhando-se paulatinamente para a situação em que o dispositivo, carregado de internet e inteligência artificial, usa a pessoa para que lhe mostre tudo o que precisa de saber e ver. Literalmente ver. CV, antes indubitavelmente Curriculum Vitae do latim, é hoje pacificamente Computer Vision do inglês.
Máquinas aumentadas com pessoas, e não o contrário, parece-me ser onde estamos e para onde vamos, com uma convicção de inevitabilidade. “Vemos, ouvimos e lemos” e devemos ignorar.
Tem de ser e eles é que sabem.