Candura dura como o metal de que é feita pode ser a primeira, segunda e, principalmente a última impressão que nos deixa o mais recente livro de Kazuo Ishiguro. A candura de Ishiguro tem muito em comum com a de Steinbeck. São estilos de escrita totalmente diferentes, mas o fio condutor, a glia que une as personagens, as histórias pequenas que deixam ver a grande, maior que o livro, maior que a vida, a brutalidade incomensurável ternamente descrita, sem floreados, sem adjetivos, só factos pontiagudos, aguçados, dilacerantes, docemente colocados um a seguir ao outro, como se só pudesse ser assim, vislumbrando-se alternativas possíveis e inviáveis, como numa enxurrada que vai por onde iria sempre, mesmo que pudesse ir por outo lado.
Não é uma candura subjetiva, humana, pequena, individual. Praticável. É a candura subjacente à humanidade, ao Universo, intemporal, amoral, avassaladora.
Não vou contar o livro, refiro só o que está na contracapa, que é público e notório. Klara é a protagonista narradora, uma Amiga Artificial (AA), que espera numa loja para ser comprada, de modo a conseguir concretizar o objetivo da sua criação.
Kazuo é japonês e inglês, em simultâneo. Nasceu no japão, é de substrato japonês. Foi para Inglaterra aos cinco anos, cresceu inglês. Nasceu numa ilha a Oriente, fez-se noutra ilha, a Ocidente. A escrita de Ishiguro tem a depuração, a essência, o sentido de dever japoneses, num cenário ocidental. Deixa quase tudo à imaginação do leitor, o que poderá ser a caraterística mais estrutural dos grandes clássicos. Cada um, em cada tempo e lugar, preenche a história com a sua história, com o seu conhecimento, com a sua experiência, fazendo de cada leitura um exemplar único do livro, que se perpetua infinitamente. Este vencedor do prémio Nobel da Literatura, em 2017, faz isso magistralmente. Tece uma teia aberta, dá a estrutura e o cenário, traça os contornos das personagens e deixa-nos o encargo de construir a narrativa que será a nossa, com a nossa substancia, terrores e anseios.
A história é do futuro, mas pouco.
Vale a pena, para todos, mas principalmente para quem segue o tema da Inteligência Artificial, aproveitar esta oportunidade para absorver o que a arte, em geral, e a literatura, em particular, fazem melhor que qualquer ciência: a criação de hipóteses que nos permitem visualizar, intuir, saber o que foi, é e será.
“O sol tem sempre forma de nos alcançar”.
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